sábado, 11 de março de 2017

A organização social mesoamericana antes da chegada dos espanhóis e o embate de discursos de poder

A organização social mesoamericana antes da chegada dos espanhóis e o embate de discursos de poder
           
Tema: História Americana Antes da Conquista Europeia

de Marco Magli

A leitura da obra “Deuses do México Indígena: estudo comparativo entre narrativas espanholas e nativas” é fundamental para a compreensão da formação e desenvolvimento das sociedades mesoamericanas, pois contrapõe-se à visão eurocêntrica da figura indígena estereotipada, conferindo-lhe história, pensamento e registro. Leva o leitor a fazer questionamentos relevantes acerca da situação atual dos remanescentes povos nativos dessas regiões. Isso pois, é expressa com clareza e exemplos a complexidade das formas de organização e integração social pré-colombiana na Mesoamérica (área que abrange aproximadamente entre o Panamá e os EUA), seus sistemas de pensamento e poder, deixando para trás o mito das sociedades indígenas “atrasadas” e “primitivas”.

Este livro de leitura fluida é ideal para quem quer entender mais do imaginário, composição e universo cultural das sociedades pré-hispânicas na Mesoamérica, sejam leigos ou especialistas. Uma visão multifacetada mas estrutural é importantíssima para compreender direito, não só a igualdade, mas como a diferença.

Para um futuro historiador, ter o contato com esse texto é entrar num terreno fértil e pouco explorado da discussão historiográfica sendo assim apresentado a algumas possibilidades de debates sobre este tema. Para estudantes brasileiros essa obra seria um exercício de leitura interessante. Ela quebra a visão comum que exista um “índio brasileiro” ou um “índio mexicano”, pois seus povos estavam nestes lugares antes se existir um Brasil ou México, ajudando a criar um vínculo de identidade latino-americana.
            
        O Doutor em História Social Eduardo Natalino dos Santos examina cuidadosamente a Mesoamérica, partindo do conceito de área cultural e explorando as singularidades e semelhanças das atividades, símbolos e significações dentro desta região. Semelhanças tais como “o cultivo de milho como base alimentar, o uso de um bastão de madeira com a ponta afiada para plantar, a produção de pulque e papel de agave, práticas de auto-flagelação e sacrifícios humanos, cultivo do cacau, jogo de pelota, construção de pirâmides escalonadas e a produção de armadas de madeira com bordas laminadas de pedra” (SANTOS, 2002, p.40) foram fundamentais para Paul Kirchoff desenvolver estudos sobre a Mesoamérica em 1943, cunhando este conceito.
            
          Entretanto, Santos não mostra apenas as semelhanças a respeito da vida material dos diversos povos que ocupavam aquela região, mas foca-se primordialmente em apresentar características parecidas ligadas ao campo do pensamento, por exemplo os sistemas de calendário e de escrita. Como já aponta o subtítulo da obra, o autor não irá preocupar-se em fazer uma análise arqueológica dessas sociedades, mas as analisá-las a partir dos registros em suas mais diversas formas e fontes.
            
         Eduardo dos Santos aponta o sistema calendário como central na cultura das sociedades mesoamericanas: “(...) o sistema de calendário possuía particularidades, mas seus fundamentos eram os mesmos por toda a Mesoamérica.” (SANTOS, 2002, p.80). Esse elemento cultural, político e econômico surge provavelmente com os Olmecas, primeiro povo hierarquizado da região, sendo desenvolvido posteriormente por zapotecas, teotihuacanos e maias e recebendo novas particularidades de cada povo, porém sem perder seu sentido fundamental. Suas vidas eram pautas por datas e eventos estabelecidos naquele método cíclico de contagem do tempo.
            
             O calendário era central para o discurso de poder religioso, político e econômico, como mostra Eduardo dos Santos: “Mais do que uma forma de apenas contar os dias e os anos, o calendário Mesoamericano organizava todas as esferas da vida: as plantações, as viagens, as festas, as guerras, o mercado, o destino, etc.” (SANTOS, 2002, p.83). Era também componente de distinção social em todos estes povos, consequentemente o conhecimento da elaboração e interpretação desses sistemas estava nas mãos de sacerdotes. “Esse ciclo de 260 dias (...) era dividido em vinte trezenas que eram expressas em livros pictloglíficos com finalidades mânticas, chamados de tonalamatl. Esses livros eram utilizados por sacerdotes especializados em prognósticos que envolviam todas as esferas da vida mesoamericana.” (SANTOS, 2002, p.81).
            
             A cosmografia mesoamericana é um outro elemento de destaque pelo autor para demonstrar uma proximidade da mentalidade mesoamericana como um todo, como expressa de forma concisa o autor: “Os povos mesa americanos também compartilhavam uma complexa e detalhada cosmografia ou visão do espaço.” (SANTOS, 2002, p.86). A verticalidade era compreendida em treze céus e nove inframundos. Entendia-se o espaço horizontal em cinco dimensões, expresso na arquitetura de muitas cidades com quatro bairros e um centro.
            
              O item porém que se vale como maior objeto de estudo do autor é o da escrita. Este é a principal fonte de pesquisa de Eduardo dos Santos e com seus resultados é também discutida no texto a questão do método de análise desses registros, sejam espanhóis ou indígenas, observando suas capacidades e limiares. Quando introduz este tema, o autor busca apontá-lo como peça de um discurso de poder e diferenciação nas sociedades mesoamericanas, assim como o professor da UNICAMP Leandro Karnal no texto “As crônicas ao sul do Equador” quando aponta que “Esses livros eram considerados tão importantes que o ilamaiini, ou o sábio, também era chamado de amoxohioca, isto é, o que possui o amoxtli ou o que segue o caminho do livro.” (SANTOS, 2002, p.87).
            
            Além dos livros de tributos e controle de mercadorias, a leitura organizava a sociedade mesoamericana reservando um lugar de sábios àqueles que tinham o saber da leitura, além de gerar especialistas na produção de livros e sua guarda. A escrita e a leitura eram de importância vital para o desenvolvimento dessas sociedades, pois permitia o registro da narração, fornecendo ferramentas necessárias para surgir gradativamente um novo pensar e produzir sentido para a vida. “Esses livros utilizavam um sistema de escritura com sua própria lógica interna, capaz de representar plenamente a sequência do pensar e a expressão da palavra, com ou sem auxílio de uma tradição oral.” (SANTOS, 2002, p. 88).

Quando os espanhóis atingiram a América, os povos então lá estabelecidos já possuíam suas bibliotecas e livros, ou seja, seus modos de registro, como os códices. Esses registros deveriam ser melhor explorados por pesquisadores segundo Santos, pois conferiria um pluralismo de vozes às quase oficializadas crônicas espanholas, abrindo mais um horizonte analítico. Porém, assim como na chegada dos europeus, como ainda hoje, a produção escrita indígena não era considerada intelectual, por isso seus escritos são descartados como documentos históricos, o que demonstra um interesse em que a história seja contada seguindo a lógica cristã e europeia, como aponta o autor no trecho destacado: “Essa situação mostra que optamos pela narrativa espanhola em detrimento de uma enorme pluralidade de vozes testemunhos, ou seja, selecionamos os relatos que se encaixavam na construção da história do moderno império espanhol e nas teorias explicativas cristãs ocidentais."
            
         A negação aos livros indígenas se aproxima de uma recusa em tentar entender de forma orgânica e hermenêutica o modo de pensar daqueles que os escreveram, baseando-se na insustentável dicotomia entre o discurso mítico e histórico, como se as representações coletivas dos povos mesoamericanos não fossem carregadas de saberes, informações e significados. Santos rejeita essa teoria afirmando que: “(...) a dicotomia entre discurso mítico e histórico não sustenta, pois o que o mundo ocidental chamou de mítico não possui um conteúdo específico, mas define-se como o oposto de um discurso que se auto-intitula científico, isto é, totalmente objetivo e universal. O que o mundo ocidental chama de mítico são relatos que nos contam representações coletivas que não são as nossas e cujos fundamentos nos são desconhecidos.” (SANTOS, 2002, p.91). Esse excerto ilustra a relação mito-história, base dos trabalhos do autor.

Todavia, a produção escrita mesoamericana apresenta alguns problemas para o estudo do pesquisador, como dificuldades de interpretação ou contextualização errada da fonte, e principalmente as mudanças do conteúdo advindas da tradução, como expressa Santos em: “Ao lidarmos com essas fontes, temos que considerar toda a problemática envolvida na transposição dos conteúdos contidos nos códices de escrita pictoglífica para os textos transliterados, muitos dos quais foram traduzidos posteriormente para alguma língua europeia. Tal processo gerou uma restruturação que, certamente, acarretou profundas alterações, pois a escritura pictoglífica foi fragmentada em diferentes formas de relatos: mapas, textos históricos, políticos e cosmogônicos.” (SANTOS, 2002, p.95). Por isso, para um exame integral do mundo mesoamericano o estudioso deve mesclar entre produções indígenas, espanholas e até produções entre ambos, como indígenas catequisados.

Além da complexidade cultural, o autor apresenta também a ideia de diversidade e concomitância temporal, que se mostra no quadro “1.2 Los períodos mesoamericanos”. O início de seu estudo faz uma fotografia panorâmica temporal mesoamericana, tratando desde seus primeiros habitantes, sem unidade cultural ou a prática do sedentarismo, até cada povo que desenvolveu em tempos concomitantes ou diferentes.

A primeira passagem aprofundada por Eduardo dos Santos é a da sociedade nômade para uma sedentária baseada na agricultura. O desenvolvimento das técnicas de plantio, principalmente a mudança genética do milho que levou anos de intervenção humana, foram forças centrais para o abandono da caça e o aumento da dependência na produção agrária.

Além de mudar a organização espacial e da rotina desses povos, o milho foi fundamental para introduzir uma cultura religiosa baseada nesse vegetal, assim começou-se a olhar para os céus para prever o clima e assim desenvolveu-se a astrologia que era empregada nos calendários. Dessa forma o autor expõe o milho só como fator de mudança econômica e social, mas de origem para uma cultura com um sentido semelhante, vista na Mesoamérica, como exposto no trecho: “A partir do desenvolvimento e da aplicação dessas práticas agrícolas e da crescente sedentarização, vários povos tiveram sua organização social e econômica alterada, o que ocorreu conjuntamente com a criação-adoção de uma nova visão de mundo, mais apropriada a um modo de vida sedentário e agrícola(...)” (SANTOS, 2002, p. 49)  

Depois de reconhecer e explicar a presença Olmeca quase como um denominador comum como base das culturas que se desenvolverão futuramente na região abordada, Natalino apresenta Teotihuacan, os zapotecas e a origem das cidades maias. A difusão do povo Olmeca se dá por inúmeros fatores. Um deles é o desenvolvimento comercial Olmeca fortalecido por volta de 600 a.C. que dá origem a cidades, com centros comerciais, cerimoniais e urbanos, no lugar de povoados ou aldeias.

Os zapotecas são introduzidos no texto com o poderio do Monte Albán, no atual estado mexicano de Oxaca. Fica claro no texto que o desenvolvimento desse povo se dá paralelamente ao desenvolvimento de Teotihuacan, e também que não se restringiu tão somente a região já citada, mas espalhou-se pelos atuais estados de Puebla, Guerrero, Chiapas e Veracruz criando uma confederação de cidades.

Além dos olmecas e zapotecas, desenvolveram-se concomitantemente na Península de Iucatã, Belize e Guatemala, cidades maias, que, embora não possuíssem um centro unificado, partilhavam traços culturais similares. Essas cidades floresceram muito antes da chamada “cultura maia” ser um conceito palpável. Além das inspirações Olmecas, as cidades maias sofreram influências dos zapotecas como a escrita pictoglífica. Portanto, ressalta-se que os centros urbanos que ganharam importância no Período Clássico (200 d.C. – 900 d.C.) foram agentes da solidificação de características observadas de forma incipiente nos olmecas.

A cidade de Tula é retratada pelo autor como um possível marco civilizacional das sociedades americanas. Os toltecas desenvolveram juntamente com essa cidade alguns dons sociais como “as casas de jejuns e cultos, os templos redondos, os auto-sacrifícios e as artes e ofícios em geral.” (SANTOS, 2002, p.65). É possível que tenham existido várias “Tulas” na Mesoamérica, pois esse nome talvez fosse sinônimo de “grandeza” visto o emprego do termo em inúmeros registros. Com a queda de Tula, os toltecas se espalharam pelo Vale do México e houve um período de intensificação da instabilidade política resultando num aumento dos confrontos entre povos. Isso abriu caminho para que os povos do norte do atual México pudessem conquistar novas terras.

São apresentados por fim os mexicas ou astecas ao leitor. Saídos de sua terra de origem, Aztlan, em 1111 d.C. por excesso populacional os mexicas rumaram ao sul. Essa migração que durou mais de 220 anos em busca de um lugar para fixar-se terminou em meio a um lago artificial que seria um dia o centro histórico da Cidade do México. Em torno desse lago os mexicas estabeleceram cidades de origem mexica. Tlatelolco e Tenochtitlan destacaram-se como centros político-comerciais.

Destarte, é importante ler a obra de Santos sabendo que ele está defendendo suas teses, seus interesses, assim como qualquer escritor, antigo ou contemporâneo, indígena ou europeu. Portanto a análise da sociedade indígena pré-colombiana passa por um exercício de escolha e interpretação de fontes, “por meio de perguntas adequadas, talvez estabelecer traços culturais básicos, assinalar as continuidades e mudanças dessas explicações ao longo do tempo e do espaço, explicitar as estruturas de conhecimentos utilizados em suas produções e buscar entender a história dos grupos que as produziram” (SANTOS, 2002, p.91). O discurso de poder estava presente e desenvolvido na sociedade americana antes da chegada europeia, ou seja, quando os espanhóis chegam no “Novo Mundo” há um embate de culturas e sistemas de pensamentos, que é quase sempre trazido ao leitor pela visão do conquistador.

O texto deixa claro que esses discursos estavam espalhados em toda a sociedade, desde a forma produtiva, as artes, a arquitetura, as cerimônias, a língua e o calendário. Desse modo, apresenta a possibilidade do estudo desses povos pré-hispânicos por meio de fontes não apenas textuais, como faz o autor, mas também analisá-las a partir de seu imaginário, mentalidade e práticas, atingindo por fim as logicas por trás de seu sistema de pensamento.

Bibliografia:

DOS SANTOS, E. N. Deuses do México indígena:  Estudo comparativo entre narrativas espanholas e nativas. São Paulo: Palas Athena, 2002. 232 p.




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