O sentido ontológico do descobrimento da
América
Tema: História da América colonial espanhola
Resumo: Esta resenha
busca, de forma concisa e objetiva, mostrar os principais conceitos
apresentados por Edmundo O’Gorman em sua Obra “A Invenção da América”.
Primeiramente é mostrado um percurso cronológico da construção da ideia do
descobrimento da América, desde o século XVI até o século XX, discorrendo
acerca de suas lendas, documentações e mentalidades de cada período. Na segunda
parte do trabalho, busca-se mostrar como autor define este sentido do ser
América, baseado em preceitos ontológicos de Heidegger.
“A invenção
da América” de Edmundo O’Gorman é uma obra inovadora. Ela critica um objeto de
pesquisa, que se analisado sob uma perspectiva rasa parece já amplamente
explorada e debatida pelos historiadores: a descoberta da América. Entretanto,
o autor deixa claro que o objetivo de sua obra não será analisar a história do
descobrimento da América em si, mas sim a história da ideia do descobrimento
desse continente, a definição de seu ser do ente América e, por conseguinte seu
sentido.
Já na primeira página da obra o autor se esforça em deixar seu objeto de estudo claro: “(...) o problema que colocamos não consiste em pôr em dúvida se foi Colombo ou não quem descobriu a América, já que essa dívida supõe admitir a ideia de que a América foi descoberta. Não, nosso problema é logicamente anterior e mais radical e profundo: consiste em pôr em dúvida se os acontecimentos que até agora têm sido vistos como o descobrimento da América devem ou não continuar entendendo-se como tal.” (O’Gorman, 1992, pg. 26)
O’Gorman inova, pois ele lança este livro em 1958, lançando este velho tema da historiografia sob a luz de um pensamento filosófico pulsante e vivo da época, o heideggerianismo, preocupado pela recolocação do problema do ser, ou seja, o ponto de vista ontológico. O’ Gorman não se restringe a só uma área do conhecimento, trazendo sempre a história conjuntamente à filosofia e à geografia nesta obra. Por conta dessa multi-especialidade e facilidade de caminhar entre os diversos tipos de conhecimento, sempre pensando no México, seu país, e na América Latina, O’Gorman faz parte da Academia Mexicana de Letras.
Este autor nasceu em 1905, bem no início do século XX, e por isso, é fácil observar em seus escritos sua verdadeira militância contra uma escola que teve enorme século anterior a ele: o positivismo. O’Gorman combate a ideia de que a história caminha, assim como o Homem, para o progresso.
Em “A invenção da América”, antes de tratar da criação do ser América, o autor preocupa-se em fazer uma análise essencial para entender o desenvolvimento da ideia do descobrimento, assim como todos os mitos e lendas que são carregadas com ela, em uma perspectiva cronológica. É disso que trata primeiro capítulo da obra. É assim explicitado na obra: “(...) será necessário reconstruir a história, mas não a do descobrimento da América, mas a da ideia de que a América foi descoberta, o que não é o mesmo (...)”. (O’Gorman, 1992, pg. 28)
Na primeira parte da obra o autor traça uma retomada cronológica de como a história do descobrimento foi entendida e contada em suas mais diversas versões. Assim o autor apresenta a lenda do “piloto anônimo”, que afirma que “(...) o motivo que levou o almirante [Colombo] a fazer a travessia foi o desejo de mostrar a existência de umas terras desconhecidas, das quais tinha notícias por informações que lhe dera um piloto, cuja embarcação havia sido lançada às praias por uma tempestade.” (O’Gorman, 1992, pg. 28)
Mas por que a apresentação dessa lenda, se não se discutirá a história em sim do descobrimento, mas a ideia por trás desta história? Pois como O’Gorman explica “(...) o importante é que, ao surgir a “lenda” como explicação histórica da viagem, iniciou-se o processo de desconhecimento da finalidade que realmente a incentivou a esta circunstância, que chamaremos de ‘ocultação do objetivo asiático da empresa’ (...)”. (O’Gorman, 1992, pg. 31)
Esta “ocultação do objetivo asiático da empresa” se conserva por muito tempo, dentro das diversas narrativas até, pasme, o século XIX. O autor então apresenta algumas formas de como esse “descobrimento da América” foi entendido com o passar do tempo.
Primeiramente é comparada a tentativa de explicação da descoberta de Oviedo e de Gómara, ambas escritas ainda no século XVI. Essas explicações se opõem, principalmente pelo fato da primeira duvidar da lenda do “piloto anônimo” e atribuir o feito ao almirante conhecido, Colombo, enquanto a segunda crê nela e duvida da consciência de Colombo em descobrir novas terras.
Então ambas as teses são mescladas pelo filho de Cristóvão Colombo, e acompanhante na quarta viagem à América, Dom Fernando Colombo. Ele expõe que se ignorava as terras antes do seu descobrimento, como defende Gómara, mas atribuir ao seu pai a consciência da existência daquelas terras, como advogava Oviedo. Assim Dom Fernando Colombo coloca que seu pai não tinha certeza da existência daquelas terras, mas teve a ideia que a ocidente da Europa deveria existir um continente ignorado, devido à seus saberes científicos e erudição, e a navegação foi a comprovação empírica de uma hipótese científica.
Essa tese acima foi escrita ainda no século XVI e será muito divulgada. Outros autores que se interessaram pelo tema irão se basear nela, para assim já escapar todo paradigma da do “piloto anônimo” e da “consciência de Colombo”. A tentativa de explicação de Bartolomeu de las Casas, contemporâneo de Dom Fernando Colombo, segue a mesma linha, porém ao invés de atribuir a consciência de novas terras a ocidente à erudição de Colombo, ele considera que “(...) o descobrimento da América é um cumprimento do um desígnio divino, realizado por um homem escolhido para esse fim. Esse homem foi Cristóvão Colombo, a quem Deus dotou de todas as qualidades necessárias para realizar a façanha.”. (O’Gorman, 1992, pg. 39)
Essa explicação de las Casas abre espaço para uma discussão acerca da mentalidade europeia cristã do século XVI em que “(...) o importante é que Colombo abriu o acesso a regiões da Terra, repleta de povos aos quais é urgente pregar a palavra revelada e conceder-lhes a oportunidade do benefício dos sacramentos antes que ocorra o fim do mundo (...)”. (O’Gorman, 1992, pg. 40)
Assim encerramos a análise da, denominada pelo autor, “primeira etapa do processo da história da ideia do descobrimento da América”, e definida pelo mesmo como: “(...) a interpretação consiste em afirmar que Colombo demonstrou que as terras que encontrou em 1492 eram um continente desconhecido, porque com essa intenção realizou sua viagem.”. (O’Gorman, 1992, pg. 57)
A segunda etapa considera que se Colombo não tinha a intenção de descobrir a América, nem teve ideia do que havia feito, então ao descobrir a América, cumpriu a intenção da História, a de que o homem deveria ter conhecimento da existência do referido continente.
Então O’Gorman traz ao leitor as teses de Navarrete, Irving e Humboldt, todos autores do século XIX. Nesses autores o objetivo asiático da empresa de Colombo em 1492 não é mais ocultado e a explicação desses autores se dá a partir da ideia do anseio geral em se fazer uma rota marítima com as Índias pelo Ocidente.
Vale ressaltar o terceiro autor, Humboldt, que acrescenta em sua teoria que o devir histórico também faz parte da justificativa dessa navegação, deixando evidente o pensamento positivista da Alemanha da década de 1860. Assim O’Gorman explicita a ideia de Humboldt: “O que faz da empresa colombiana o ato significativo que se conhece como descobrimento da América é que, nessa empresa, realizou-se um desses progressos dos conhecimentos científicos em que se fundamenta, segundo vimos, a própria essência da marcha do homem em direção ao seu destino histórico.” (O’Gorman, 1992, pg. 51)
O autor então, avança cronologicamente nas tentativas de explicação dessa viagem e alcança um autor contemporâneo a si. O’Gorman analisa a tese de Samuel Eliot Morison de 1942. Esta tese inicia-se como as anteriores, do século XIX, com a clara defesa do objetivo asiático da empresa colombiana. Contudo difere-se, das demais, pois Morison afirma que “Colombo sempre esteve convencido que havia chegado à Ásia desde a primeira vez que encontrou terra em 1492.” (O’Gorman, 1992, pg. 55)
Portanto, “terceira etapa do processo da história da ideia do descobrimento da América”, assim denominada por O’Gorman, é aquela que hoje se ensina e venera nas escolas, chamada de tese do “descobrimento casual” da América. O autor explica o problema dessa tese: “Assim, o homem já não é servo do seu devir histórico (...) mas é escravo de não se sabe que processo mecânico dos entes materiais inanimados.” (O’Gorman, 1992, pg. 60)
Após este momento de desconstrução, ou melhor, reconstrução da história da tese do descobrimento da América, desde o século XVI até o XX, é momento do autor aprofundar-se na sua discussão ontológica e conceitual sobre seu objeto, ou seja, a invenção do ser América. Então O’Gorman mostra alguns dogmas que são precursores da discussão do descobrimento da América. O primeiro é que este continente é um “ser descobrível”. O segundo, logicamente, é que este ser tenha um “descobridor”, dotando um sentido predeterminado a esse ser, que o autor tratara mais afrente em sua obra. Por fim supõe-se que “o descobrimento do ser da coisa é cumprido pelo mero contato físico com ela (...) Deste modo, teremos então não apenas a suposição de que o descobrimento é um ato em si, dotado, por isso, de um sentido ou de um ser predeterminado, mas também, coerentemente, teremos a suposição de que a coisa mesma é a que tem a intenção que dá ao ato o referido sentido.”. (O’Gorman, 1992, pg. 60)
O autor então reafirma que a ideia do descobrimento da América não é satisfatória, pois trata-se de uma premissa ontológica na qual a América constitui este ser descobrível. O ser da América é um ser baseado nos outros continentes que se conhece neste período, Europa, África e Ásia, por isso seu sentido é ser a “quarta parte do mundo”. O que mostra esse sentido pré-encaminhado para a América é a própria escolha de seu nome, que seria a “terra de Américo”, mas como os outros continentes também tem nomes femininos, esse também deve ter.
Ou seja, a América é pensada como um continente a partir dos outros, é pensada, a priori. Este é, em síntese o conceito de uma América inventada, diferentemente da velha noção de uma América descoberta. Essa revolução conceitual de O’Gorman confere muito mais historicidade, dinamismo e vivacidade para a história americana, pois “sua história não será aquilo que a América ‘passou’, mas aquilo que ‘foi, é e continua sendo.’” (O’Gorman, 1992, pg. 67)
A segunda parte da obra de O’Gorman traz algumas preocupações diferentes da primeira, embora ambas sejam essências para o estabelecimento dessa invenção da América. Esta parte traz um estudo mais focado no pensamento e mentalidade no século XV e XVI sobre o que era o mundo e suas concepções geográficas e religiosas. Traz também ao leitor uma discussão linguística apresentada pelo autor sobre termos como, “mundo”, “terra firme” e “ilha”.
O autor difere a viagem colombiana da de Vespúcio, sendo que o primeiro era guiado por um pensamento a priori, ou seja, guiado pela imagem tradicional de mundo, onde havia um orbis terrarum que era um “mundo ilha”, cercado de agua pelos lados. Esta ideia a priori de Colombo é explicada pelo autor que “(...) como não pode colocar em crise a previa ideia que lhe deu vida, ou dito de outra maneira, que o fato de haver encontrado uma massa de terra firma num lugar não previsto, não conseguiu impor-se como a revelação possível, por Colombo acreditou poder explicá-la dentro do quadro da imagem tradicional do mundo.” (O’Gorman, 1992, p. 163.)
Já a ideia de Vespúcio surge a posteriori, ou seja, após suas experiências o italiano se rende ao pensamento de que o mundo não deve ser um “mundo ilha”, como tradicionalmente pensado desde a Idade Média, como mostra o autor: “(...) era forçoso concluir que se tratava de uma terra firme separada do orbis terrarum pelo mar. O que era então essa terra?” (O’Gorman, 1992, p. 157). “Suas afirmações foram a partir do reconhecimento do empírico, configurada sobre a posteriori de sua experiência, que exigia revisar a imagem medieval do mundo.” (O’Gorman, 1992, p.175).
Antes de partir para a tese do texto que é o sentido da América, o autor com uso de recursos geográficos, como mapas e portolanos, para mostrar como no século XVI, era das viagens ultramarinas, inicia-se um processo de mundialização, que parecido com a globalização, com o surgimento da internet, ou a Revolução Industrial com as rotas comerciais novas, é possível ver representações de encurtamento de distância, como por exemplo, o Cosmographiae Introductio de 1507, que ao invés dos outros mapas que mostravam terras divididas por águas, este mostra mares divididos por continentes.
Vê-se então, que o século XVI que abre a possibilidade de ser abarcar no universal, a palavra mundo muda de significado, o poder do homem parece aumentar relativamente ao da natureza e o “mundo” passa a ser visto como um infinito campo de conquista. Ou seja, o orbis terrarum que até o final do século XV significava a crença que vivíamos em uma ilha cercada de água por todos os lados, muda para o conceito de que o mundo seja esse novo espaço, como explica o autor: “já não se identifica somente com a Ilha Terra, nem unicamente com o conjunto das duas grandes entidades insulares que agora se diz que engloba, mas, sim com o globo terrestre inteiro. “. (O’Gorman, 1992, p. 184).
Por fim, O’Gorman expõe sua principal tese, a que ele busca explicar o “(...) sentido próprio a essa entidade que está ali reclamando o seu reconhecimento e um ser específico que a individualize.”. (O’Gorman, 1992, p. 173). Para ele a América é um continente que é pensado a partir do conhecimento e da visão europeia e eurocêntrica. Uma excerto que exprime este sentido é: “O aparecimento no seio da cultura e da história, não certamente como resultado da súbita revelação de um descobrimento que tivesse exibido, de um golpe, um suposto ser misteriosamente abrigado, desde sempre e para sempre, nas terras que Colombo achou, mas como o resultado de um complexo processo ideológico que acabou, através de uma série de tentativas e hipóteses por atribuir-lhes um sentido peculiar e próprio: o sentido do ser da quarta parte do mundo. (O’Gorman, 1992, p. 179)
Outro excerto que demonstra este sentido empregado na América, é que a civilização europeia era considerada (por eles mesmos) “a civilização mais perfeita do ponto e vista do homem natural, mas que era também o reduto da única verdadeira civilização, aquela fundada na fé cristã e, principalmente, no sentido histórico transcendental do mistério da Redenção. (...) A Europa seria assim o único devir humano dotado de autêntico significado (...) norma suprema para julgar e apreciar as demais civilizações.”. (O’Gorman, 1992, p. 195).
Em suma, esse sentido próprio do ser América, essa individualização, não no sentido de ser indivisível, mas sim no sentido de se ter características ímpares e uma posição no mínimo diferente e desafiadora, essa individualização é, na verdade o que leva o nome da obra e o autor chama de “invenção da América”.
Destarte, este ser, sujeito ontológico, no qual
o autor busca incessantemente em sua obra é o ser potencial. A América, como
baseada nos princípios europeus é espelhada sempre nesta comparação, porém sem
jamais ter tal capacidade de atingi-lo como sociedade e civilização. Portanto o
ser da América é um ser potencial, é uma possibilidade que se debruça na sua
irmã mais velha, a Europa, sem, porém, jamais alcançá-la, como mostra O’Gorman:
“O “novo mundo”, pela sua condição não poderia realizar o ser do “velho mundo”.”
(O’Gorman, 1992, p. 198).
Bibliografia:
O'GORMAN, Edmundo. A invenção da América: reflexões a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do seu devir. São Paulo: Unesp, 1992[1]
Bibliografia:
O'GORMAN, Edmundo. A invenção da América: reflexões a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do seu devir. São Paulo: Unesp, 1992[1]
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