sábado, 11 de março de 2017

Bartolomé de las Casas e as contradições do discurso e da prática religiosa na América no século XVI


Bartolomé de las Casas e as contradições do discurso e da prática religiosa na América no século XVI


 Tema: História da América colonial espanhola

de Marco Magli

Resumo: Este texto tem como objetivo buscar os pontos mais importantes na obra “Bartolomé de las Casa e a simulação dos vencidos – Ensaio sobre a conquista hispânica da América” de Hector Bruit. Além disso busca-se estabelecer uma conversa entre o autor supracitado e Enrique Dussel, que trabalharam com a mentalidade no “sul da Europa” e com a história da filosofia na América Colonial. Ademais, de forma breve, é estabelecida no texto a tentativa de trazer à tona a figura complexa e contraditória do frade dominicano Bratolomé de las Casas.


            A obra “Bartolomé de las Casa e a simulação dos vencidos – Ensaio sobre a conquista hispânica da América” (Editora da Unicamp, 1993) é a tese de livre-docência de Hector Bruit para a Unicamp, mas também é o estudo mais reconhecido do autor até hoje, juntamente com “Revoluções na América Latina”. Bruit nasceu no chile, onde formou-se em História e Geografia (1962) e fez sua pós-graduação em História da América na Universidade do Chile (1965). No final dos anos 1960 Bruit radicou-se em São Paulo até o fim da vida, onde obteve seu doutorado em História Social pela USP (1972) e lecionou na Unicamp, Unesp (Marília) e Puc-SP.
            
            O objetivo deste texto é expor algumas das ideias principais de Bruit expostas no capítulo três de sua tese de livre-docência, que como o nome indica, pretende explorar o pensamento do frade dominicano Bartolomé de las Casas. A figura de las Casas é interessantíssima, pois é marcada por contradições de seu pensamento, de suas origens, de seu tempo. É também proveitoso e invariável estabelecer um diálogo intertextual entre Bruit e Enrique Dussel, que trata do surgimento do pensamento moderno Ocidental em sua obra “Epistemologias do Sul: o anti-discurso filosófico da modernidade”, tentando mostrar uma visão multiangular sobre este tema abordado por ambos autores, porém com objetos e abordagens distintas.
            
          Las Casas nasceu em 1486 em Sevilha, no sul da recém unificada Espanha (1469). O fato mais curioso de sua biografia jovem é sem dúvidas, e que contribui com as contradições de las Casas, que aos 6 anos ganhou de presente do pai um “índio”.

Sevilha era o principal porto de saída de empresas espanholas colonizadoras em direção à América, e também era um polo epistêmico. A Universidade de Salamanca, na cidade portuária, era o cerne do que havia de mais inovador e moderno em filosofia e conhecimento formal na Europa, como afirma o mexicano Enrique Dussel, como por exemplo a recém absorvida filosofia aristotélica que começou a ser discutida lá, pois adentrou o continente europeu a partir do sul da Península Ibérica com a dominação moura.
           
            Algumas dessas ideias de Aristóteles começaram a ser usadas por pensadores do sul da Europa como legitimação teórica para a conquista, a colonização e a escravidão de povos nativos. Teoria essa que desejava mostrar uma “desigualdade natural” entre os homens. O autor coloca em suas palavras: “A ideia aristotélica de que alguns homens, por natureza, são seres políticos e outros não, o que divide a humanidade em homens livres e superiores servos por natura, serviu de fundamento a teólogos e juristas, como Ginés de Sepúlveda, para justificar a conquista e servidão dos indígenas.” (Bruit, 1993, pg. 91)

Em Salamanca também discutia-se a obra de São Tomás de Aquino e Erasmo de Rotterdam e por lá passaram, Pedro Gomes Labrador, Hernán Cortés, entre outros colonizadores antes de sua empreitada. Las Casas também passou por Salamanca, onde estudou Humanidades e Latim, antes de embarcar para a América em 1502.

Bruit não ignora este fato importante na vida e na trajetória do pensamento de las Casas e resume: “os pensadores espanhóis em geral, e os da escola de Salamanca em particular, deram uma contribuição indiscutível ao conceito de igualdade de direitos e deveres entre os homens; à ideia da liberdade das pessoas para mobilizarem-se entre os diferentes territórios do mundo; ao conceito de liberdade política dos povos; ao princípio da origem popular do poder real.” (Bruit, 1993, pg. 98)

O período que abrange a vida de las Casas, se estende por todo o período de “conquista” e parte inicial da “colonização” da América. Esses tempos não foram conturbados somente na prática, mas também foram muito decisivos e inflamados na efervescente academia espanhola. Entre 1530 e 1580 aproximadamente, é que se dá a grande concentração desses debates, numa conjuntura americana impactada pela enorme e importante queda demográfica mesoamericana do século XVI. Neste período há o debate ético que pretende discorrer sobre o “bem” e o mal na colonização, que para Dussel é um tema que abrange e toca em preocupações da modernidade.  Além da queda demográfica e o debate ético, outro assunto em pauta na época eram as encomiendas, o embate entre o poder do encomendero e da Coroa, mas principalmente, e que esta também relacionado ao domínio territorial: a guerra justa.

O conceito de “guerra justa” já era palpável pela Igreja Católica desde as primeiras Cruzadas, mas é retomado e reformado no final do século XV com as navegações ultramarinas ibéricas. Para o autor: “Em termos gerais, os princípios básicos que regulavam a guerra era: injúria prévia por parte dos infiéis, a posse injusta de domínios e propriedades e quando os infiéis, com seus atos, atentavam contra a paz. Toda teoria da guerra justa estava baseada nestes três pontos.” (Bruit, 1993, pg. 95)

Juntamente com a guerra justa surge também a discussão sobre a evangelização e a violência. No centro deste debate estão dois importantes nomes espanhóis: Domingo de Soto e Francisco de Vitória. O pensamento deles é expresso pro Bruit: “Para Vitoria, era viável usar a força quando os bárbaros impediam os espanhóis de anunciar livremente o Evangelho, mas rejeitava o uso da mesma para obrigar os índios a aceitarem a conversão (...) Diferentemente Soto defendeu a ideia de que a vontade dos infiéis devia ser respeitada nos dois momentos, isto é, se não quisessem escutar os predicadores, estes deviam retirar-se, e nem sequer o papa tinha direitos para obrigá-los a escutar o Evangelho.” (Bruit, 1993, pg. 99)

Las Casas é um personagem contraditório, pois em princípio defendeu a colonização e a evangelização forçada dos índios e depois foi um dos mais duros críticos à colonização espanhola na América, a ponto de escrever sobre este processo que “Todas as coisas obedecem ao dinheiro e os índios evangelizados são instrumento para alcançar o ouro" (Bruit, 1993, pg. 90), no “Tratado comprobatorio del imperio soberano”.

A tal “conversão” de las Casas se dá em 1511, quando o jovem frade ouve outro dominicano, António de Montesinos, que em sermão defendia a dignidade dos índios. A partir deste dia renunciou suas encomiendas e começou a fazer um trabalho de pesquisa, descrição e denúncia que foi trazido e afastado do debate intelectual por diversos grupos e interesses ao longo da história.

Las Casas faz discussões extremamente modernas em sua lógica e atuais até os dias de hoje, como quando debate a questão da representatividade política na Coroa espanhola, para atacar suas ações, como explica Bruit: “O povo delega a soberania ao rei para que este governe em função do bem comum, finalidade que autoriza o governante a ditar leis que podem limitar os direitos individuais, mas nunca os direitos coletivos. O bem comum devia ser o ponto de equilíbrio entre o rei e os súditos. Quando o poder não era produto do consenso e da eleição, então era tirânico(...)”. (Bruit, 1993, pg. 108)

Embora por muito tempo foi taxado de extremista em suas críticas, las Casas tomava atitudes bem “moderadas”, refletindo toda a discussão e seu posicionamento moral, como mostra o autor: “Las Casas não defendeu todos os índios, censurou e denunciou os Caciques que exploravam os povos, que alugavam terras aos índios mais desvalidos, os índios traidores. Tampouco condenou os colonizadores em geral.” (Bruit, 1993, pg. 109)

O grande episódio acadêmico da vida de las Casas foi o Debate de Valladolid (1550), quando, por ordem do Rei Carlos I da Espanha, foram reunidos juristas, religiosos e outros pensadores, inclusive o Rei, para ouvir um debate entre las Casas e um opositor de suas ideias e adepto das ideias aristotélicas, Juan Ginés de Sepúlveda.

Pelos relatos, parece que a retórica de ambos era, embora abstrata, muito precisa. Las Casas, porém, faz uma argumentação muito mais detalhada e demorada que a de Sepúlveda. Para o debate, las casas preparou a obra “’Apologética historia de Ias Indias’, um monumental tratado etnológico com 257 capítulos e pouco menos de oitocentas páginas, que contêm a argumentação histórica. Esse enorme material, não apenas explica os cinco dias de exposição na primeira sessão, mas evidencia que o dominicano foi para o debate disposto não só a convencer o tribunal, mas para arrasar com seu contendor.” (Bruit, 1993, pg. 122)

Destarte, para os que estavam presentes deve ter sido clara a superioridade de las Casas no debate teórico, porém de fato o ganhador, no campo da praxis foi Sepúlveda, pelo simples fato de suas ideias terem sido adotadas e consideradas mais interessantes para a Coroa espanhola.

Assim, mesmo com toda a preparação retórica e o tratamento textual dado por las Casas, suas reflexões não passaram do plano abstrato em geral e seus escritos foram por muito tempo deixados de lado do debate intelectual. Hoje, esses escritos podem e devem ser retomados para análises e trabalhos sérios dos estudantes de História e Filosofia, tanto na América Latina quanto na Península Ibérica, pois faz parte de um pensamento que embora existisse e pareça tão atual e crítico, esse esteve longe de ser o discurso hegemônico e, por conseguinte, a prática nas colonizações.

Bibliografia:

HERNÁN BRUIT, H. Bartolomé de las Casas e a simulação dos vencidos: ensaio sobre a conquista hispânica da América. 1993. 228 p. Tese (livre-docência) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas. 1993.[1]

DUSSEL, ENRIQUE. Meditaciones anti-cartesianas: sobre el origen del anti-discurso filosófico de la Modernidad. Tabula Rasa,  Bogotá ,  n. 9, p. 153-198,  Dec.  2008 .   Available from <http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1794-24892008000200010&lng=en&nrm=iso>. access on  11  Mar.  2017.[2]

Nenhum comentário:

Postar um comentário