PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS - DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Disciplina Optativa: O Cinema e a Interpretação da História
Prova emitida em 21/11/2017 – Data de Entrega das Provas, pelos Alunos: 28/11/2017
Aluno (a):Marco Magli (RA00180650)_________________________________________________________
Desenvolva uma reflexão a partir do enunciado proposto.
Em sua extensa trajetória, o Cinema talvez seja uma das formas mais precisas de Conhecimento, uma vez que restitui o movimento do mundo no movimento das imagens. E isso significa que o conhecimento da História vem recebendo imensa contribuição do Cinema. Contudo, tanto no campo do Documentário, quanto no campo da Ficção, a imagem oferecida é, quase sempre, distorcida pelo caráter interpretativo que o ato do Olhar expressa, colocando em grande risco o conhecimento em sua mais pura dimensão.
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A discussão sobre Cinema como reflexão acerca de “totalidade”
Em primeiro lugar, é importante explicar o título da reflexão proposta. O viés que pretende-se tomar neste texto não irá fugir dos pontos importantes colocados no enunciado, das obras dos autores trabalhados, ou das discussões estabelecidas em sala. A escolha de usar a análise do Cinema para discutir uma noção preestabelecida de totalidade, que embora abstrata, está presente em um “inconsciente coletivo”, parece ser mais que só um método para se explorar este conceito, mas também uma forma de se responder às questões cruciais do Cinema, como as propostas acima.
Em respeito ao enunciado, sua primeira frase é correta, diz ela: “Em sua extensa trajetória, o Cinema talvez seja uma das formas mais precisas de Conhecimento, uma vez que restitui o movimento do mundo no movimento das imagens.”. De fato, o Cinema, desde seus primórdios desperta discussões sobre essa forma de expressão.
Metz coloca na introdução de sua obra que “Na época em que o cinema era algo novo e espantoso, em que o simples fato de existir já era um problema [...] de todos estes problemas de teoria do filme, um dos mais importantes é o de impressão de realidade vivida pelo espectador diante do filme.” (METZ, 2004, p. 15-16) Para Christian Metz esta reconstituição do movimento é uma peça chave para a compreensão da escala e a potencialidade do cinema. Essa impressão de realidade causada por uma junção de fatores, como a reprodutibilidade de estímulos sensíveis, visuais e auditivos, capazes de serem apreendidos pelo público com o mínimo de alterações entre apresentações, é o que faz do cinema uma das formas mais precisas de conhecimento.
Conhecimento, este que precisa ser conceituado para ser discutido e que pode levar o espectador a ser “enganado”. Primeiramente, o “conhecimento preciso” que pode ser apresentado pelo cinema é a possibilidade de representação e registro, feitos a partir de um recorte, que apresenta ao espectador particularidades. O cinema tem uma capacidade de indução do público a um estado catártico quase imediato, por conta desta impressão de realidade, que além de estimular o espectador sensorialmente, muitas vezes o conecta emocionalmente com a obra cinematográfica. Este último exemplo diz respeito à “enganação” do espectador e pode ser visto em toda a história do Cinema, não só nas propagandas nazistas ou nos filmes suprematistas raciais estadunidenses, como também em novelas, peças publicitárias, documentários, ficções, telejornais e etecetera. Ou seja, o recurso audiovisual é uma forma extremamente potente de comunicação e poder e aparentemente precisa de conhecimento ao espectador.
A “enganação” no cinema diz respeito também aos gêneros do Documentário e da Ficção. Metz na análise deste fenômeno de catarse o denomina de “[...] ‘transferência de realidade’; esta implica uma atividade afetiva, perceptiva, intelectiva, cujo impulso inicial só pode ser dado por um espetáculo parecido com o mundo real.” (METZ, 2004, p. 25). Nos filmes documentais todos estes fatores afetivos, perceptivos e intelectivos afloram ao espectador pela (suposta) proximidade com o “mundo real”. E este é um ponto importante da reflexão.
Primeiro, a noção de “mundo real” e “totalidade” não estão intrinsicamente ligadas. Isto é, que uma pequena fração deste “mundo real”, ou seja, essa reprodução de um microcosmo selecionado com elementos, os mais abstratos que sejam, que necessariamente remetem a aspectos do conhecimento ou da experiência histórica da humanidade, já pode ser suficiente representação de totalidade ao público. Aliás, é importante pontuar que nem mesmo a ficção mais abstrata ou vanguardista, surge “do nada”, ou seja, sem uma estrutura concreta já conhecida social e historicamente, em seu conteúdo e forma. Por outro lado, nem mesmo o mais realista documentário pode ser visto como “fonte imparcial”, mas sim como recorte, eleição de prioridade com implicações semânticas e, portanto, políticas.
Contudo, é clara a ligação entre a noção de “totalidade” e “materialismo” que tanto a reflexão sobre o cinema quanto o método de análise marxista propõem, produzindo o não-dissociar entre a singularidade, a particularidade e a universalidade. Isso é colocado por Lukács na “Ontologia do Ser Social”, quando considera que “[...]a concepção dialético-materialista da totalidade significa [...] a relatividade sistemática de toda a totalidade tanto no sentido ascendente quanto no descendente (o que significa que toda a totalidade é feita de totalidades a ela subordinadas e também que a totalidade em questão é, ao mesmo tempo, sobredeterminada por totalidades de complexidade superior[...]” (LUKÁCS, 1979, p. 12)
Isso demonstra que a possibilidade que o cinema apresenta para análise da totalidade é extremamente fértil. Mesmo um filme que tenha, por exemplo como proposta mostrar uma “totalidade”, ele será obrigado a fazer recortes. O ocultado é tão importante quanto o mostrado no cinema. Entretanto, justamente o ato do recorte é o que confere ao cinema sua importância de análise de uma totalidade, esta que paradoxalmente sabemos ser inatingível de representação plena, mas justamente por esta afirmação, mostramos que a conhecemos, enquanto seres sociais, ou pelo menos tempos uma noção de “totalidade”.
Quando Jacques Aumont discute em sua obra “A Imagem” o conceito de Analogia, uma discussão é feita justamente sobre uma “noção de totalidade” e sua possibilidade de ser representada:
“Para Goodman, a noção de imitação quase não tem sentido: não se pode copiar o mundo ‘tal como ele é’, simplesmente porque não se sabe como ele é. Essa expressão só pode significar isto: ‘copiar um aspecto do mundo tão normal quanto possível, visto por um olho inocente’ – mas não existe normalidade absoluta, nem olho inocente, já que a visão é sempre paralela à interpretação, até na vida mais cotidiana. Ao copiar, nós fabricamos.” (AUMONT, 2004, pp.202).
Nelson Goodman, o autor citado por Aumont não desconstrói a noção de totalidade, no sentido de negar a materialidade do mundo. Goodman apenas reflete acerca de como a possibilidade de captação da totalidade de maneira “intacta”, “perfeita”, completa” é um idealismo.
Outro ponto importante do enunciado para discutir sobre é a questão da “distorção” da imagem causada pelo olhar condicionado do espectador. Ao colocarmos esta afirmação, se assumimos que há distorções, consequentemente existe também a ideia da não-distorção. Contudo, esta “não-distorção” sai do campo das ideias e existe no já explorado “mundo material”?
Pensar que pode haver uma obra audiovisual sem essa “distorção” que o passa pelos olhos do espectador é pensar sobre um cinema infactível. Isto pois, o cineasta deve conhecer seu público enquanto coletivo, ou seja, entender que as pessoas têm uma carga de vivência e conhecimento adquirido socialmente que é carregado com elas. Pensar em uma não-distorção é imaginar um público ideal, mas irreal, isso significa que essa “mais pura dimensão” proposta no enunciado é extremamente subjetiva e inatingível. O que faz do cinema passível de crítica e interpretação como qualquer discurso, expressão ou ação.
Por fim, é importante retomar alguns pontos dessa reflexão. Primeiramente, que o conhecimento propiciado pelo cinema é importante para interpretar-se a história, passada e presente, contudo a “precisão” desse conhecimento é discutível, como aliás deve ser em qualquer ciência ou arte. A capacidade do cinema de mimetizar a realidade e criar sobre ela é que o faz uma arte especial, principalmente no quesito catártico, e por conta da catarse e de sua reprodutibilidade é uma ferramenta de comunicação em massa. Por isso mesmo o cinema não pode pensar em um público ideal, e é importante que se discuta a noção de totalidade e realidade material que as filmagens proporcionam.
Bibliografia:
- METZ, Christian. “A respeito da impressão de realidade no Cinema”. In: METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2004, 2° Edição – 1° reimpressão, (pp. 15-28).
- AUMONT, Jacques. “1. A analogia”. In: AUMONT, Jacques – L’Image, s/l, Éditions Nathan (trad. Port. De Estela dos Santos Abreu e Cláudio Cesar Santoro, A Imagem, Campinas, Papirus, 8° edição, 2004, 317), (pp. 197-212).
- LUKÁCS; Ontologia do ser social. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Ciências Humanas, 1979.
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