UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE PEDAGOGIA
A obra infanto juvenil “A bicicleta que tinha bigodes” como fonte histórica: para entender a libertação da Angola a partir das personagens da obra e do “autor criança”
SÃO PAULO
2019
História da Educação I
Profa.Dra. Maria Angela Borges Salvadori
Nome: Marco Magli
N° USP: 11219814
A obra infanto juvenil “A bicicleta que tinha bigodes” como fonte histórica: para entender a libertação da Angola a partir das personagens da obra e do “autor criança”
Marco Magli
Resumo: O presente texto busca analisar brevemente a obra do escritor angolano Ondjaki, a partir de seus personagens, símbolos e significados. Ainda explorar um pouco da mistura entre, literatura, memória e história a partir do olhar do “autor criança”, que nesse caso se mistura entre personagem principal e autor.
Palavras-chave: A bicicleta que tinha bigodes. Angola. Ondjaki. Literatura africana de língua portuguesa. Descolonização. Guerra Fria.
Introdução
O livro “A bicicleta que tinha bigodes” (Editora Pallas, 88 p.) deve ser lido e trabalhado por professores e estudantes do ensino básico brasileiro. Esse romance infanto-juvenil do jovem escritor e poeta angolano Ondjaki levanta questões importantíssimas para serem tratadas, na sociedade e em sala de aula como a cultura africana, o processo histórico de libertação colonial de Angola, relações africanas no período da Guerra Fria ou até os caminhos possíveis entre, memória, literatura e história.
Principalmente a partir da promulgação da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras em instituições de ensino básico no Brasil, esse texto assume uma dimensão política e pedagógica não antes valorizada. As relações sul-sul, cada vez mais reconhecidas no âmbito acadêmico e social, ficam expressas nesta obra, apesar de não tratar diretamente do Brasil, trata de Angola. E desde o século XVII, os observadores, como nessa célebre frase atribuída ao Padre António Vieira, já afirmava a complementaridade social do Atlântico Sul “[...] sem negros não há Pernambuco e sem Angola não há negros.". Um observador contemporâneo dessas relações, o músico e ex-ministro da cultura do Brasil, Gilberto Gil também não se engana ao cantar que “[...] só quem sabe onde é Luanda saberá lhe dar valor, dar valor[...]”.
Desse modo, este breve texto tem como objetivo passar por esses aspectos supracitados explicando-os e propor o uso dessa obra como documento histórico, ou seja, como parte de uma chave, uma narrativa, para compreensão do passado e do presente.
Contexto histórico
Desde o século XV a presença portuguesa de forma institucional e massiva foi uma realidade em terras hoje chamadas de Angola. Diogo Cão, navegador a serviço da Coroa portuguesa, adentrou em 1483 nas águas do rio Zaire, a partir de sua foz que deságua no Oceano Atlântico, fazendo o primeiro contato institucional europeu que temos registros com o Reino do Congo (o que não devemos confundir com o Estado Nacional moderno da República do Congo ou da República Democrática do Congo) e seu líder político, o Manicongo. (FLORENTINO, 1995)
Durante todo o período colonial de domínio da metrópole lusitana sobre a América Portuguesa a Angola esteve também sob o jugo do colonizador português. Mas não para aí. Apenas em 1975 esse país, após mais de 14 anos de uma guerra de libertação nacional com mais de 30.000 mortos do conflito, e de séculos de resistência colonial, a Angola conseguiu se ver livre da dominação colonial.
O movimento político que teve maior participação na resistência angolana e que assumiu o governo do país após a revolução foi o Movimento Popular de Libertação da Angola, o MPLA. De cunho marxista-leninista em suas origens, e liderado pela figura de Agostinho Neto, o MPLA foi um dos precursores do marxismo africano posto em prática, no período do chamado “socialismo real”. Real pois o socialismo era uma realidade no mundo. Mas não apenas isso, era uma verdadeira ameaça para a ordem capitalista vigente, tendo o mundo como grandes faróis da revolução socialista a União Soviética, exitosa em não poupar esforços para derrotar o nazi-fascismo europeu e asiático na Segunda Guerra Mundial, bem como a China, que já se desenvolvia rapidamente para afastar-se de mazelas da pobreza extrema como a malária e o analfabetismo assim como a então jovem, mas poderosa e embativa política e ideologicamente Cuba. (VISENTINI, 2012)
Ou seja, Angola foi ajudada por essas potências a livrar-se do imperialismo, portanto manteve contato, interação e amizade com esses povos, nações e Estado. É justamente na década de 1980 que dá-se a infância de Ondjaki em Luanda, que como a maioria das crianças desse contexto tiveram nessa conjuntura uma base da infância e da realidade.
Apresentação do autor
Ndalu de Almeida, ou como é conhecido por suas publicações, Ondjaki é um jovem escritor angolano de apenas 41 anos. Nascido em Luanda, capital angolana, no ano de 1977, onde viveu sua infância e adolescência, o romancista e poeta formado em Sociologia em Lisboa pode em sua cidade natal conviver com o clima pós independência de Angola.
Doutor em Estudos Africanos na Itália, o criativo escritor começou a publicar livros em 2000. Isso quer dizer que sua paixão por literatura começou muito antes. Ele mesmo afirma que foi com cerca de 13 que os livros de literatura em língua portuguesa o abraçaram. Desde cedo leu literatura africana, como Mia Couto e Manuel Rui, bem como a literatura portuguesa como Camões ou mundial, como Gabriel García Márquez ou Sartre. Mas o que sempre chamou a atenção de Ondjaki foi a literatura brasileira. Nomes como Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Manoel de Barros sempre estiveram presentes na cabeceira do jovem escritor africano.
Esse seria talvez o fator mais importante do intercâmbio Sul-Sul proposto em suas obras, mas não é, simplesmente pelo fato de que o autor é residente do Rio de Janeiro desde 2007. Ou seja, cinco anos antes de lançar a obra neste artigo analisada, o autor já vivia em solo brasileiro, e mais, pretendia escrever literatura africana para o público brasileiro. Público esse, que se analisado por uma leitura rasa parece ser o infanto-juvenil, mas não somente o é, como também é o público adulto.
Os personagens e a paisagem sociológica de Angola
O enredo, a princípio simples, se inicia, sem uma marcação temporal exata, mas com claras referências do período da passagem da década de 1970 à 80, após a independência, com uma campanha da Rádio Nacional de Angola oferecendo uma premiação ao jovem angolano que escrevesse a melhor história e a enviasse para a avaliação da emissora. O prêmio seria uma linda bicicleta novinha com as cores da Angola.
Nesse começo já é possível observar dois aspectos que podem ser analisados na obra. Primeiramente, é fundamental entender o papel do rádio em experiências de grandes movimentos de massa, processos revolucionários, de independência ou até de “desenvolvimento nacional”, o último muito bem exemplificado pelos primeiros anos da Era Vargas.
Na luta pela independência de angola não foi diferente. O rádio, desde sua invenção e popularização sempre foi um instrumento de politização, e isso se deve a uma série de fatores, como o baixo custo de transmissão radiofônica, se comparado aos outros meios de comunicação em massa, a facilidade de se transmitir as frequências de rádio por longas distâncias, a falta de necessidade de que seu ouvinte seja alfabetizado para que ele entenda as mensagens ou até mesmo a possibilidade que o rádio oferece de ser escutado enquanto se executa um trabalho, principalmente manual. (JAMBEIRO, 2004)
O outro aspecto observável nesse início de história é a bicicleta que não seria um veículo qualquer. Era especial, por ser pintada com as cores da bandeira angolana. Isso é um aspecto sutil que demonstra a valorização pelos símbolos nacionais levada a cabo pelos processos de descolonização, principalmente na África. Como Todorov assume sobre alteridade e simbologias.
De modo que qualquer pesquisa sobre a alteridade é necessariamente semiótica; e reciprocamente: a semiótica não pode ser pensada fora da relação com o outro. (TODOROV, 1983, p. 87)
O enredo segue. Duas crianças, não muito apresentados na narrativa, são as personagens principais. O menino, sem nome definido, personagem principal e narrador e Isaura, a melhor amiga de sua rua. A estratégia de não dar nome ao principal personagem da história vai no caminho de universalizar a possibilidade da criança autora em todos os leitores dessa obra, em outras palavras, busca por fazer que qualquer leitor se sinta um produtor literário autoral e reflita sobre sua própria realidade. A óbvia missão dessas crianças é escrever essa importante história e ganhar a bicicleta. Ondjaki se preocupa muito mais em explorar o processo de busca dessa grandiosa história e de sua escrita do que o produto em si do que os jovens estavam escrevendo.
Para buscar essa história, os jovens escritores encontram-se com personagens arquetípicos de uma angola dos anos 1980. Os personagens, escolhidos, a dedo pelo autor, fazem um fidedigno retrato do imaginário de um jovem angolano naquele contexto, como era Ondjaki, sobre a composição da sociedade angolana do período.
Entre esses personagens, uma importante figura da obra é a Avó Dezanove, uma senhora cheia dos conselhos mais sábios, carregando em sua personagem a carga da ancestralidade, a transmissão oral de conhecimento, dos Griots. Também é de grande centralidade na trama o personagem Tio Rui, um tio de um dos jovens que era o portador dos bigodes que enfeitam o título da obra.
Tio Rui era um grande contador de histórias, essas que ficavam guardadas dentro de um baú em seu quarto e serviam de inspiração para Tio Rui desembaraçar as letras que estavam presas em seus bigodes para formar histórias, ou pelo menos assim ele era visto pelos jovens do romance. Esse personagem é uma clara homenagem e referência a Manuel Rui, um dos mais importante nomes da intelectualidade e militância angolana do processo de libertação nacional, quase sempre citado e referenciado, de alguma forma, nas obras de Ondjaki. Poeta, escritor, jornalista, ministro do MPLA e, inclusive, autor do hino nacional de Angola.
Outro personagens, que os jovens encontram, embora menos centrais na trama revelam também traços da história de angola em suas personalidade. O General Dorminhoco é um personagem que representa a burocracia do exército sobre uma figura, que não é má, mas é rígida, às vezes um obstáculo, apesar das melhores intenções. Ou até mesmo o motorista Nove, que havia perdido um dedo na guerra.
E por fim, a menina Isaura, personagem em homenagem à Isaura dos romances do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana. Na trama de Ondjaki, ela era uma criança vizinha que nomeava os animais da rua com nomes de personalidades políticas do momento, como gafanhoto Samora Machel, os sapos Fidel e Raul, o Gandhi e a 'Tatechér'.
Os nomes não são dados à toa. O gato Tatechér, referência à figura de Margareth Thatcher era um assassino que comeu dois papagaio e foi castrado, demonstrando o ódio da personagem à figura da premiere britânica. Ao tornar-se manso, depois de ser castrado, o mesmo gato é rebatizado de Gandhi, por exemplo. Os sapos Raul e Fidel, são animais pelos quais a menina tem certo carinho, o que demonstra a relação de amizade entre o povo cubano e angolano, bem como entre os governos dessas duas nações à época.
Considerações finais
Um aspecto interessante pedagogicamente da obra estudada é que por ela utilizar muito o recurso dos paralelismos e intertextualidades, bem como referências a figuras reais da história mundial causa ao leitor curiosidade de pesquisar dos nomes mais comuns aos menos citados na obra, como é afirmado por Luciana Lee (2014).
A personagem Isaura é muito importante na narrativa, então iniciaremos com ela. Isaura dá nomes de personalidades do cenário internacional aos bichos da rua, principalmente nomes de presidentes. A sugestão é que o aluno faça uma pesquisa para saber quem são esses personagens na vida real. Depois disso, a turma discutiria o motivo pelo qual o gato teve seu nome trocado de Tátecher para Ghandi. (LEE, 2014, p. 134)
Do aspecto linguístico do livro é importante apontar que o autor segue a grafia e as expressões idiomáticas angolanas. Ao fim do livro há um glossário, traduzindo e explicando esses termos das variantes linguísticas do português angolano. Isso é uma ponte de interdisciplinaridade entre literatura, história e língua portuguesa que não só pode como deve ser explorado pelo professor ou professora que vier trabalhar com essa obra em sala de aula. Como afirma, novamente, Lee.
Por meio da leitura interdisciplinar, o aluno é levado a uma visão crítica e complexa do texto literário, não esquecendo as suas especificidades e subjetividades como obra literária. A leitura interdisciplinar, assim, deve ir além da questão estética do texto, ampliando o universo do leitor e convidando-o [...] “a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo” [...] O professor de Literatura, ao apresentar “A bicicleta que tinha bigodes” na sala de aula, pode mostrar o imaginário das crianças angolanas, porém despertando o interesse do leitor brasileiro por tratar de temas inerentes às crianças do mundo inteiro, de tal forma que da sensibilização pode-se passar à promoção do conhecimento extensivo às outras disciplinas, pois o pensar interdisciplinar, por possibilitar vários tipos de abordagem de uma mesma obra, torna a leitura prazerosa, produzindo sentido para os alunos, pois insere essa obra em contextos significativos que costumam enriquecer a sua relação com o mundo. (LEE, 2014, p. 138)
Por fim, pouco importa a bicicleta, ou o concurso da Rádio Nacional. O mais importante ressaltado pela trama é a convivência, de jovens entre eles mesmos, mas também o câmbio entre gerações, proporcionado pelo autor. No fundo, esse livro também abre uma boa brecha para se tratar das continuidades entre literatura, memória e história. Isso pois, o autor se coloca como uma criança.
Uma criança, no caso que não era nem era submetida às práticas da “paparicação” bem como não era “adultizado” (Ariès, 1978), mas sim era uma criança criativa, criadora, com estilo literário e cognitivo e, principalmente, autora. É daí que surge a questão do “autor criança”. Ele observa a sociedade com olhos ingênuos aos olhos de um ingênuo, trocando em miúdos, como a inteligência e elegância típicas de toda criança.
Nesse aspecto, é difícil não perguntar-se qual é a distinção entre a história e a memória. Num livro como este exato nome, o brilhante Jacques Le Goff aponta que
Também em outros domínios a atenção pelo passado desempenhou um papel importante: na literatura, com Proust e Joyce, na filosofia com Bergson e, finalmente, numa nova ciência, a psicanálise. Nela, o psiquismo é representado como sendo dominado pelas recordações inconscientes, pela história oculta dos indivíduos e, principalmente, pelo passado mais longínquo, o da mais tenra infância. A importância atribuída ao passado pela psicanálise foi, no entanto, negada [...] (LE GOFF, 2003, p. 193)
É nesse passado mais longínquo que se estabelece a relação entre o que é lembrado e o que é apreendido. Ondjaki se mistura ao personagem principal, quando escreve a partir de o olhar de duas crianças: o personagem em si mesmo. É assim, destarte fundamental entender que o que é retratado pelo autor na obra também é o que está guardado em suas retinas desde seus passados mais longínquos, e quem busca separar o autor da obra de maneira integral percorre uma estrada sem rumo.
Bibliografia:
ARIÈS, P. História social da infância e da família. Tradução: D. Flaksman. Rio de Janeiro: LCT, 1978.
FERNANDES, A. C. S. As imagens da infância e "A bicicleta que tinha bigodes". Revista de África e Africanidades, Rio de Janeiro, n. 20, 2015. Disponível em <http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/004020072015.pdf>.
FLORENTINO, G. M.. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (sécs. XVIII-XIX). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995, 300 pp.
JAMBEIRO, O. Tempos de Vargas: o rádio e o controle da informação. Salvador: Ed. UFBA, 2004. 191p.
LEE, L. A bicicleta que tinha bigodes: atividades interdisciplinares para a aplicação da lei nº 10.639/2003 na educação básica. Revista Cenários, Porto Alegre, v. 1, n. 9, p. 127-138, 2014. Disponível em <https://seer.uniritter.edu.br/index.php?journal=cenarios&page=article&op=view&path%5B%5D=868>.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
ONDJAKI. A bicicleta que tinha bigodes. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
TEIXEIRA, S. N. Heróis do mar: histórias dos símbolos nacionais. Lisboa: Esfera dos Livros. 160 p. 180. 2015.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1983.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 4.ed. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro
VAINFAS, Ronaldo e MELLO E SOUZA, Marina de. “Catolização e poder no tempo do tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII”. In: Tempo. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, v.3, n.6, dez/1998, pg. 05
VISENTINI, Paulo Fagundes. As revoluções africanas – Angola, Moçambique e Etiópia. (Direção da coleção Emília Viotti da Costa) São Paulo, SP: Ed. Unesp, 2012. 182 p.
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